Quando a Influência Excede o Bom Senso: Como China e Coreia Estão a Reescrever as Regras para Criadores — e o Que o Ocidente Está a Ignorar
Introdução: O novo campo de batalha da influência digital
Hoje, um criador com um smartphone pode gerar mais impacto político que um colunista de jornal. Pode moldar perceções, alimentar discussões nacionais e até influenciar resultados eleitorais. Mas… o que acontece quando pessoas sem formação comentam temas extremamente complexos como saúde pública, finanças, educação, segurança nacional ou diplomacia?
É essa pergunta que está agora a levar China e Coreia do Sul a introduzir medidas históricas para limitar quem pode falar sobre determinados tópicos, enquanto o Ocidente segue no sentido oposto, dando ainda mais espaço e visibilidade a criadores pouco qualificados.
O resultado é um choque cultural, político e ético que expõe duas visões completamente diferentes sobre a relação entre liberdade de expressão, responsabilidade digital e o papel da influência moderna.
Este artigo explica:
O que está realmente por trás das novas regras na China e na Coreia
Por que muitos governos asiáticos acreditam que isto é necessário
Como a desinformação alimentada por criadores se tornou um problema global
Por que os EUA e a Europa estão a caminhar na direção inversa
E o que isto significa para o futuro da comunicação pública e do marketing digital
1. China: diploma primeiro, opinião depois
A China já tinha regras que exigiam licenças profissionais para criadores que comentassem áreas como finanças, saúde, direito ou educação, mas agora decidiu reforçar a aplicação desta política. Segundo o regulamento atualizado da Administração do Ciberespaço da China (CAC), criadores que pretendam abordar tópicos sensíveis devem comprovar:
qualificações profissionais,
certificados oficiais,
ou formação académica reconhecida.
→ Tal como estabelece o documento oficial sobre “Conduta para Emissoras Online” , quem não apresentar as credenciais corretas pode enfrentar multas que chegam aos 14 mil dólares.
Objetivo declarado:
Evitar que pessoas sem formação influenciem milhões com informações erradas, sobretudo em setores onde desinformação pode literalmente causar danos (medicina, finanças, legislação, etc.).
Objetivo não declarado:
Controlar também narrativas que possam gerar instabilidade social ou críticas ao governo, algo que faz parte do ecossistema regulatório chinês. Mas, independentemente da componente política, há uma verdade inegável: a China está a tentar impedir que a viralização substitua a competência.
2. Coreia do Sul: portas fechadas a criadores que espalham ódio e desinformação
A Coreia do Sul enfrenta outro problema: influenciadores estrangeiros que entram no país, gravam conteúdo sensacionalista, provocador ou ofensivo, e depois aproveitam o algoritmo para lucrar com a polémica. Dois casos famosos:
Johnny Somali, streamer americano, foi detido após criar vídeos a provocar coreanos em espaços públicos.
Debo-chan, youtuber de origem coreana, publicou um vídeo falso que alegava que “dezenas de corpos mutilados” tinham sido encontrados no país.
O governo sul-coreano está agora a considerar limitar a entrada de estrangeiros que usem a Coreia como palco para conteúdo prejudicial. Como relatou o The Korea Times , a intenção é impedir que estes criadores abusem da liberdade digital para gerar instabilidade social.
Aqui, a preocupação é menos “qualificação técnica” e mais paz social e combate ao sensacionalismo.
3. O contraste: enquanto Ásia restringe, EUA ampliam
Enquanto os países asiáticos apertam regras, os EUA caminham na direção oposta:
A Meta suspendeu programas de verificação de factos de terceiros, reduzindo barreiras à desinformação.
As plataformas flexibilizaram políticas de moderação, após pressão da administração Trump.
Criadores e podcasters que amplificam propaganda e teorias da conspiração foram nomeados para posições governamentais.
Uma postura assente na ideia de que menos regulação = mais liberdade de expressão. O problema é que isso também significa:
mais espaço para charlatões,
mais terrenos férteis para teorias conspiratórias,
mais manipulação emocional,
e mais desinformação massiva.
E como mostram múltiplos estudos, incluindo pesquisas sobre consumo político em redes sociais publicadas pela Pew Research Center — a população americana está a consumir mais notícias de “influenciadores” do que de jornalistas.
A consequência? Os opinadores substituem os especialistas.
4. A verdade desconfortável: criadores mal informados moldam milhões de opiniões
A ascensão dos influenciadores criou um fenómeno novo: a confiança está a migrar dos especialistas para as pessoas “relacionáveis”. Um criador com humor, linguagem simples e postura casual tem hoje mais autoridade, na mente de muitos, do que:
um economista,
um médico,
um investigador académico,
ou um jornalista experiente.
E isso acontece porque:
o algoritmo premia emoção e polarização,
os criadores premiam conteúdo viral,
o público premia entretenimento,
e a verdade fica no meio, muitas vezes perdida.
É aqui que países como China e Coreia dizem: “Isto não pode continuar sem limites.”
Já os EUA dizem: “Isto é liberdade.”
5. Quem tem razão?
A resposta é complexa, mas alguns pontos são claros:
✔ Criadores não qualificados provocam danos reais.
As consequências vão de decisões financeiras ruins a comportamentos médicos perigosos.
✔ A viralização não mede competência.
Mede apenas reação emocional.
✔ As plataformas ocidentais incentivam a polémica, não a precisão.
É assim que funcionam anúncios, watchtime e receitas.
✔ Censura extrema não é solução.
Mas ausência de regras também não é. O que a Ásia está a tentar fazer é criar uma zona intermédia entre caos e controlo absoluto.
6. O que isto significa para o futuro do marketing e para as marcas
Empresas e marcas devem preparar-se para um futuro em que:
Criadores terão de comprovar credibilidade para falar de certos temas.
Plataformas poderão exigir certificações para conteúdos sensíveis.
Influenciadores irresponsáveis serão vistos como risco reputacional.
A confiança do público vai depender cada vez mais de transparência e qualificação.
A era do “qualquer um fala sobre tudo” está a aproximar-se do fim, pelo menos nalgumas regiões.
Conclusão: Entre liberdade e responsabilidade, o mundo escolhe caminhos opostos
O debate sobre criadores, desinformação e regulação mostra duas visões irreconciliáveis:
Ásia:
Protege a sociedade, mesmo que isso limite a liberdade individual.
Ocidente:
Protege a liberdade individual, mesmo que isso prejudique a sociedade.
Nenhuma das abordagens é perfeita. Mas ambas refletem prioridades culturais profundas. A pergunta que fica é esta: Num mundo onde criadores influenciam política, economia e saúde pública, faz sentido que qualquer pessoa possa opinar sobre qualquer tema sem consequências ? Ou estamos a caminhar para uma era em que credibilidade volta a ser mais importante do que viralização ? O futuro das redes sociais pode depender da resposta.